Marlene Rêgo Rocha
Meu nome é Marlene Rêgo Rocha, nasci e me criei na comunidade do Igarapé do Costa, na região de Santarém, Pará, Brasil. A comunidade, com cerca de 80 famílias, está localizada às margens do rio Amazonas e aqui temos apenas duas estações no ano: o inverno, quando chove muito, e o verão, a época de seca.
Dona Marlene © WWF-Brasil

No inverno, o rio chega a subir três metros, deixando todos ilhados. O único meio de transporte é a canoa ou o barco. Já no verão, a gente tem que andar até três quilômetros para conseguir água no rio Amazonas. São dois extremos.

Tenho 51 anos e sou funcionária do município, auxiliar de enfermagem. Cuido da saúde de todo mundo aqui. Sou uma das poucas pessoas que não vive da pesca. Há poucas profissões aqui na comunidade além de pescador. Temos uma escola, o posto de saúde e algumas igrejas. Quem não trabalha num desses locais, pesca. A agricultura aqui se tornou muito difícil, já que a cheia do rio vem cada vez mais forte e mais rápida. Não dá tempo de plantar e colher quase nada.

Plantações já foram o sustento


Mas não foi sempre assim. Quando era jovem, trabalhava na roça com a minha mãe. A gente plantava mandioca e juta. Com a mandioca, fazíamos a farinha e com a juta, as embalagens. Vendíamos toda a produção aqui mesmo na comunidade. Era disso que a nossa família e muitas outras viviam.

Com o tempo, as plantações foram rendendo cada vez menos até que, agora, não dá mais tempo de plantar e colher mandioca ou juta. A água do rio sobe muito mais cedo e muito mais depressa que naquela época.

Por isso, a alternativa que encontrei para ter alimentos frescos é plantar no solo no verão e, quando chega o inverno, passar tudo o que é possível para um isopor, fazendo uma horta suspensa, nos fundos de casa. Tenho no isopor hoje tomate, cebola, couve e muitas plantas medicinais como camomila, capim-santo e mastruz. Quanto aos outros mantimentos, é preciso trazer de Santarém.

Animais sobem com o rio


As criações também já se acostumaram a viver de acordo com o pulso da enchente. No verão, os animais ficam no chão, a maioria é criada solta. Depois, a gente os coloca em cercos de madeira e vai levantando o andaime conforme o rio vai subindo. As galinhas já se acostumaram e fazem das árvores seu poleiro. Meu marido joga milho para elas num tablado construído embaixo das árvores e só quando elas descem para comer é que a gente percebe que tem galinha ali.

Até o ano 2000, minha mãe tinha gado e meu irmão trabalhava com ele, mas foi ficando muito caro. Se fosse para mantê-lo o tempo todo aqui no Igarapé do Costa, teria que ser confinado subindo sempre o andaime. Isso significaria alimentá-los com ração, o que é muito caro. É muito mais em conta levar o gado para áreas rurais próximas, as colônias. Lá os animais ficam soltos no pasto. Muitas famílias da nossa comunidade têm terras nas colônias, outras alugam durante o inverno. A minha família alugava, mas o preço dessa operação toda estava ficando muito alto pra nós e tivemos que nos desfazer do gado.

Este ano tentei criar porcos, mas também tive que vendê-los. Estava encarecendo muito mantê-los no chiqueiro. Fiquei apenas com as galinhas e os patos. Mas é preciso ficar muito atenta para o ritmo da cheia. Ontem à noite choveu mais do que a gente esperava e três patinhos morreram porque não conseguimos levantar o andaime a tempo. Eles ainda estavam muito novos.

Artesanato como fonte de renda


Uma lembrança que tenho muito forte da minha infância é a de minha mãe trabalhando as cuias com as outras mulheres da comunidade. Naquela época, enquanto os homens saíam para pescar, elas colhiam as cuias, limpavam, curtiam, pintavam e depois as vendiam. Nessa região, a cuia é muito usada para tomar tacacá, um prato típico do norte do país. As cuieiras que antes eram encontradas com fartura no Igarapé do Costa hoje são raras. Elas foram levadas pela força das enchentes. Agora, quando a gente quer uma cuia nova, tem que mandar vir de Santarém.

Ventos estragam casas

Outra mudança que tenho sentido é o aumento da força dos banzeiros, as ondas que se formam no rio por causa do vento e batem nas nossas casas. Quando eu era pequena, não me lembro da mamãe se preocupando com a possibilidade de o banzeiro arrancar o assoalho ou o teto da casa. A gente dormia tranqüilo. Também tinha muito mais árvore naquela época e acho que isso ajudava a conter a vento.

Em 2006, quando houve a grande cheia aqui na comunidade, a água subiu uns trinta centímetros para dentro de casa. E o meu piso é um dos mais altos por aqui, tem 2,82 metros de esteio. Foi nesse mesmo ano que o banzeiro arrancou várias tábuas do meu assoalho. Balançava tudo durante a noite. Eu e meu marido já havíamos percebido em anos anteriores que o banzeiro estava ficando cada vez mais forte.

Adaptação aos banzeiros

Por isso, em 2005, havíamos decidido plantar um capim chamado canarana para tentar conter um pouco a força do vento. Em 2006, depois do episódio das tábuas arrancadas, resolvemos ampliar bastante a área de canarana plantada. Agora acho que o banzeiro está menos intenso aqui em casa. Pelo menos não incomoda tanto. Acredito que nossa idéia esteja dando certo. Não tivemos prejuízo desde então.

Não tenho vontade sair daqui da comunidade, por isso estou me prevenindo, fazendo este trabalho aqui em casa e me preparando para um futuro melhor para mim e para os meus filhos. Acho a vida aqui muito tranqüila, é bom estar perto da natureza e da família da gente.

Espero que nossa comunidade possa ficar sempre aqui, neste mesmo lugar. Por isso temos que fazer o que estiver em nosso alcance para termos condições de continuar vivendo aqui. Sou muito feliz com a minha família.

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