© Victor Hugo Sanches / WWF-Brasil

Luta contra o fogo no Pantanal

04 novembro 2021   

De 2020 para cá, parceria entre Ecoa e WWF-Brasil formou 10 brigadas no bioma, com 76 integrantes. Mais uma será criada até o fim deste ano, composta por 9 brigadistas

Maíra Teixeira

O fogo que consumiu 40.606 km2 do Pantanal em 2020 – ou 27% do bioma no Brasil – e a seca extrema em 2021 não têm impactado apenas a fauna e a flora, mas também o modo de vida da população. A pescadora Milena dos Santos Bastos Arruda, de 23 anos, é um exemplo. Ela precisou aprender a bordar para complementar a renda da família. “De 2019 para cá temos achado pouca tuvira”, conta. Essa espécie de peixe, em geral abundante, ocorre normalmente perto de vegetação flutuante nas margens de grandes rios e em locais inundados. “Os bichos também estão vindo menos. Está mais seco e quente. E os incêndios nos prejudicam muito. A vegetação que se foi faz falta para tudo, até para a sombra que quase não temos mais por aqui”, acrescenta.
 
Milena acredita que aprender a manejar o fogo e a dominar as técnicas para combatê-lo é uma questão de sobrevivência para quem mora no Pantanal. Em um dos momentos mais críticos das queimadas do ano passado, a casa da mãe dela quase foi atingida. “Conseguimos apagar com muito esforço e com muita gente ajudando. Agora, com os ensinamentos do curso e os equipamentos, teremos mais condições de nos proteger e de salvar a nossa região”, diz.
 
O curso a que Milena se refere foi realizado no início de setembro de 2021. Na ocasião, além da capacitação e de ferramentas de combate ao fogo, ela e outras seis mulheres receberam equipamentos de proteção individual, formando a primeira brigada inteiramente feminina do Pantanal: a Brigada Ilha do Baguari, comunidade localizada a três horas de barco da zona urbana de Corumbá, município campeão em número de queimadas em Mato Grosso do Sul: 2.794 focos de 1º de janeiro até 27 de setembro deste ano – o equivalente a 40,4% do que o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) detectou no estado.
 
Conduzido pelo PrevFogo/Ibama (Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais), o treinamento é fruto de uma parceria entre a Ecoa - Ecologia e Ação e o WWF-Brasil. De 2020 para cá, foram formadas 10 brigadas no bioma, com 76 integrantes, cinco delas com recursos do Consulado Alemão. Mais uma será capacitada até o fim deste ano, composta por 9 pessoas. Uma das maneiras mais efetivas de fortalecer o primeiro combate às chamas em regiões de difícil acesso, minimizando seus impactos sobre a vegetação e evitando grandes incêndios, é justamente com a atuação de brigadas comunitárias. Por isso é tão importante o engajamento da população local.
 
Milena não foi a primeira da família a se tornar brigadista. Uma de suas irmãs, Rosadilma dos Santos Bastos, foi capacitada no ano passado. Era a única mulher numa turma de brigadistas formada na comunidade de São Francisco. No curso do início de setembro, participaram ainda uma outra irmã e a mãe de Milena. Todas também bordadeiras, uma atividade que desde 2015 tem ajudado no sustento de mulheres da região. O grupo já está atuando no combate ao fogo na região do rio Paraguai Mirim.
 
“A importância desse tipo de trabalho está em transformar a dinâmica no território. Primeiro capacitando, sensibilizando e educando para o manejo do fogo, que na região é cultural, mas que agora aumenta a preocupação pelos longos períodos e extensões de áreas de estiagem”, explica André Luiz Siqueira, da Ecoa. “Criamos processos de mitigação de impacto e as pessoas do local têm o papel de multiplicadores em seu entorno. Essas parcerias apoiam as comunidades, que já estão vivendo dias muitos difíceis”.
 
Uma análise feita pelo ICV (Instituto Centro de Vida), baseada na plataforma Global Fire Emissions Database (GFED), mostra que 655 mil hectares do Pantanal brasileiro foram atingidos pelo fogo entre 1o de janeiro e 12 de setembro de 2021, ante 2,17 milhões de hectares no mesmo período de 2020. Embora os números de agora estejam mais baixos, ainda são preocupantes, especialmente porque o Pantanal, bioma caracterizado por ser alagadiço, perdeu 74% de sua superfície de água desde 1985, de acordo com dados do MapBiomas Água.
 
Indígenas na luta contra o fogo
 
Se em Corumbá são as mulheres da família Bastos que se destacam, em Miranda, a 255 quilômetros da capital de Mato Grosso do Sul, um dos principais expoentes na luta contra o fogo é Gilson Pinheiro Gomes, de 39 anos. Ele é o líder da brigada da aldeia Lalima, onde vivem cerca de 1,5 mil indígenas. Do povo Terena, cuja tradição incentiva que seus integrantes estudem e multipliquem os conhecimentos para garantir o seu modo de vida e a sua existência, Gilson encontrou no combate ao fogo sua forma de contribuição – antes em uma brigada profissional do Ibama, agora como brigadista comunitário.
 
“A gente quer trazer o conhecimento dentro das nossas escolas, das aldeias. Estudar é uma forma de preservar nosso conhecimento. É uma evolução sem deixar nossa cultura de lado”, explica Gilson. Em 2013, ele foi selecionado em um concurso do PrevFogo, concluiu a formação de brigadista profissional em Miranda e se tornou oficialmente funcionário do Ibama. No mesmo ano, foi criado um esquadrão de combate dentro de sua aldeia e ele escolhido como chefe. “Para mim, que já amava a natureza, essa formação me fez amar ainda mais e entender que a melhor forma de combate ao fogo no nosso território é a prevenção. O compromisso de um brigadista vai além da própria terra. A gente combate o fogo em qualquer lugar”, salienta.
 
Gilson comandou as ações e capacitações da brigada até 2015, quando, por cortes de verbas, a brigada do Ibama deixou de existir ali e ele começou a buscar outros trabalhos. Foi monitor de estudantes em uma escola em Miranda, depois trabalhou em uma fazenda e foi se virando como autônomo até agosto deste ano. Agora realizou o grande sonho de ver uma brigada comunitária criada e atuando onde mora, graças ao projeto da Ecoa e do WWF-Brasil. “O objetivo maior é sensibilizar crianças, jovens e adultos sobre a prevenção do fogo, além de atuar no controle do fogo inicial”, diz.
 
De 1º de janeiro a 27 de setembro de 2020, Miranda registrou 51 focos de queimadas, ante 146 no mesmo período deste ano, de acordo o Inpe. Segundo o brigadista, o esquadrão profissional mais próximo fica em Aquidauana, município a 90 quilômetros da aldeia Lalima, o que dificulta – e muito – o combate ao fogo e casos de emergência.
 
Desafios no Pantanal
 
Lutar contra queimadas no Pantanal é um desafio, pois o avanço das chamas decorre principalmente da má utilização dos recursos hídricos, do manejo inadequado do fogo e da seca prolongada. Por isso a atuação das brigadas comunitárias é fundamental. Em 2020, o projeto da Ecoa, em parceria com o WWF-Brasil, doou mais de 900 itens de combate ao fogo, com o investimento de R$ 27.570.
 
Neste ano, estão sendo investidos R$ 190 mil em cerca de 900 itens, entre equipamentos de proteção individual e ferramentas de combate. Uma nova frente de atuação contará também com a sensibilização e capacitação de pecuaristas. Considerando os treinamentos e as despesas de logística, o valor total do projeto supera R$ 500 mil.
 
“Todas essas ações de treinamento de brigadas civis fazem parte do eixo prevenção e combate a incêndios florestais. Cada brigada tem capacidade de dar uma resposta inicial, em unidades mais próximas de situações de incêndios. Essas brigadas têm mais agilidade na resposta emergencial e trabalham para evitar que o fogo tome grandes proporções”, explica Osvaldo Barassi Gajardo, especialista de conservação do WWF-Brasil.
 
Uma das funções das brigadas comunitárias é acionar o Corpo de Bombeiros e o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) para atuação pós-inicial. Para Gajardo, a estratégia neste contexto de mudanças climáticas é a forma mais efetiva e rápida de lidar com o problema. “Primeiro vem a resposta da brigada comunitária, que está mais perto ou vive no território, depois o combate profissional. Tudo está conectado”, diz.
 
Por outro lado, a sensibilização e o treinamento de um grupo de pecuaristas sobre o uso correto do fogo é uma maneira de engajar esses agentes. Esta ação conta com a parceria com o Consulado Geral da Alemanha no Brasil e será realizada entre o fim de novembro e o começo de dezembro, com pelo menos 40 participantes.
 
“O Pantanal é assolado por incêndios desde 2019. No ano passado, 27% da área do bioma foi atingida pelo fogo e já são três temporadas com números recordes, com uma enorme perda de biodiversidade e emissão de gases de efeito estufa, ampliando os efeitos das mudanças climáticas”, ressalta Cassio Bernardino, coordenador de projetos do WWF-Brasil. “A formação de brigadas e a capacitação de produtores rurais é fundamental. E esse tipo de ação é um exemplo da capacidade colaboração entre governos e sociedade civil para endereçar os grandes desafios de reversão da degradação em nosso país”, acrescenta.
 
A sensibilização de pecuaristas e do setor produtivo, que tradicionalmente faz o manejo do fogo, é essencial para incentivar boas práticas no bioma. O fogo, que faz parte da dinâmica do Pantanal, é usado para renovação de pastagens, mas deve ser feito dentro da legalidade e com as técnicas adequadas. “Se não conseguirmos proteger melhor a natureza e o clima, sentiremos as consequências em tudo. Precisamos fazer um esforço conjunto que ultrapasse fronteiras. Para a Alemanha, ajudar a proteger um bioma como o Pantanal é um assunto de grande importância. É muito bom podermos contribuir para isso por meio do nosso projeto com o WWF”, ressalta Thomas Schmitt, cônsul-geral da Alemanha em São Paulo.
 
O brigadista Terena concorda. “Ajudar é cooperação, né? Espírito de cooperação e de compreensão também. O trabalho é muito pesado e a gente faz por gostar da natureza também. A gente pega amor pelas plantas e pelos animais e quer poder andar descalço dentro da aldeia, comer um peixe assado que veio do rio. A gente precisa preservar e viver em harmonia com todos, em todos os lugares”, ressalta Gilson.
 
Onde estão as brigadas comunitárias
 
Em 2020, as brigadas treinadas foram compostas por pessoas da aldeia Brejão (Nioaque/MS), membros da APAIM (Associação de Pescadores Profissionais de Iscas de Miranda) que moram no início da estrada Parque Pantanal Sul (Miranda/MS), do Assentamento 72 (Ladário/MS), Porto Esperança (Corumbá/MS), Barra do São Lourenço/Porto Amolar (Corumbá/MS). No ano passado, também foi feita a doação de kits para sete brigadistas, contendo EPIs e ferramentas de combate ao fogo, para atuação no Parque Estadual Nascentes do Taquari (Coxim/MS).
 
Em 2021, seis novas brigadas já foram capacitadas e receberam equipamentos, também foi feito um novo treinamento para as brigadas formadas no ano passado. Um último treinamento será realizado até dezembro. Os grupos criados neste ano são da aldeia Lalima (Miranda/MS), da aldeia Mãe Terra (Miranda/MS), da APAIM (Miranda/MS), e das comunidades Antonio Maria Coelho (Corumbá/MS), São Francisco (Corumbá/MS), e Paraguai-Mirim (Corumbá/MS), esta última formada apenas por mulheres, da qual a pescadora Milena faz parte.

VEJA MAIS IMAGENS